
Memórias de Casanova, Parte II, Capítulo 3
Casanova: ― Creio que ignora quem sou ―
disse-me a bela incógnita.
Mulher de Josuff: ― De fato, é-me impossível
adivinhar.
Casanova: ― Sou há cinco anos a esposa do
seu amigo. Nasci em Quios e tinha apenas treze anos quando o desposei.
Extremamente
surpreso ao ver que o meu filósofo mulçumano se emancipava a ponto de me
permitir um colóquio com sua mulher, senti-me mais à vontade, supondo poder
levar mais longe a aventura. Para fazê-lo, no entanto, seria preciso que lhe
visse o rosto, pois um corpo bem vestido, do qual não se vê a cabeça, só
poderia despertar desejos fáceis. O fogo
dos desejos assemelha-se a um fogo de palha: mal arde, já atinge o auge. Tinha
ali à minha frente um esplêndido simulacro, mas não divisava a alma, pois um espesso
véu furtava-a a meus olhos. Via dois braços de alabastro, torneados com graça,
e aquelas mãos de Alcina, dove né nodo
appar, né vena excede,* e a minha ativa imaginação previa o restante em
harmonia com aquelas belezas. As Pregas graciosas do tecido deixavam transparecer
toda a perfeição dos contornos, só me ocultando o cetim vivo da superfície;
estava, pois, certo de que tudo era belo, mas tinha necessidade de ver em seus
olhos que aquilo que eu imaginava estado dotado de vida e de sentimento.
O vestuário
oriental não é senão um belo verniz que se passa de leve sobre um vaso de
porcelana, a fim de preserva-lhe do tato o colorido das flores e das figuras,
mas sem quase nada furtar os olhos.
A mulher de
Josuff não estava trajada como sultana; trazia, em vez disso, um costume de
Quios, como uma saia que não impedia se visse nem a perfeição das pernas, nem a
curva voluptuosa e audaz dos quadris, aos quais dava maior relevo um corpete bem
justo, cingido por magnífica faixa bordada de prata, em arabescos. Por cima de
tudo isso, viam-se dois globos que Apeles teria tomado como modelo, para sua
Vênus, e cujo movimento, pronunciado mas desigual, me indicava que havia vida
naquela deliciosa proeminência. A delicada concavidade que se via entre eles, e
que eu devorara com os olhos, parecia-me um regato de néctar em que meus lábios
ardentes ansiavam por desdentar-se. E tal era o anseio que nesse momento teria
recusado a própria taça dos deuses.
Inebriado e
não podendo mais dominar-me, estendi o braço, num impulso quase independente de
minha vontade, e minha mão ousada lhe teria levantado o véu, se ela não mó impedisse,
erguendo-se lesta nas pontas dos pés e censurando-me o atrevimento, em tom tão
imponente quanto à atitude em que se pusera.
Mulher de Josuff:― Como pode merecer a amizade de
Josuff, se lhe viola a hospitalidade, ofendendo lhe a esposa?
Casanova: ― Perdoe-me, senhora... não tive
a intenção de ofendê-la. Porque, de acordo com os costumes da minha terra, o
último dos homens tem o direito de pousar os olhos na face da rainha.
Mulher de Josuff:― Sim, mas nunca arrebatar-lhe o
véu, se ela o trouxer! Josuff me vingará.
(*) Em italiano, no original: “Onde não aparecem nós,
nem se mostram
veias. (Ariosto, Orlando Furioso)
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